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Gelo... com água quente?!


Pegas numa vulgar cuvette de cubos de gelo, e pões numa metade água fria, na outra água quente. Colocas a cuvette no congelador. Qual das metades achas que congelará primeiro? Ou congelarão ambas ao mesmo tempo?

     Erasto Mpemba era um jovem tanzaniano que frequentava o liceu nos EUA. Um dia, em 1963, estava, juntamente com os colegas, a fazer gelados. Ele deveria juntar leite a ferver com açúcar, misturar bem, deixar arrefecer e, então, pôr a mistura a congelar. No entanto, estando já bastante atrasado relativamente aos colegas, não deixou a mistura arrefecer, e pô-la ainda quente no congelador. Os colegas bem o ridicularizaram por tal situação – mas, para espanto de todos, a sua mistura congelara mais rapidamente que a dos colegas (que a deixaram arrefecer previamente)! Mais tarde, Mpemba e um seu professor, D.G. Osborne, publicaram um artigo em 1969 na revista Physics Education (Vol. 4, pág.172-5), descrevendo as várias experiências que resultavam nesse fenómeno. Este passou a ser conhecido por efeito de Mpemba.

 

     Curiosamente, este fenómeno até já é conhecido há vários séculos! A primeira referência conhecida é dada por Aristóteles, no século IV a. C., quando afirma na sua obra Meteorologica I que água previamente aquecida contribui para um arrefecimento mais rápido. Em 1461, o físico Giovanni Marliani confirma igualmente essa situação. Para além desses, outras personalidades, tais como Descartes e Francis Bacon demonstram (estes por volta de 1600) o que parece ser já conhecimento comum, quando referem o mesmo fenómeno em circunstâncias similares às descritas por Aristóteles. Porém, durante a elaboração das teorias modernas do Calor, tal fenómeno apenas se preservou nalgumas crenças populares. A rejeição pelas entidades científicas desta "ideia" algo polémica substancia-se no raciocínio intuitivo de que a água mais quente teria de percorrer uma "distância termométrica" maior que a água fria (ambas à mesma velocidade), até atingir o ponto de congelação a zero graus Celsius – supondo-se recipientes iguais e temperaturas iniciais não muito dispares.

     Pois… isto poderia estar correcto se a variação de temperatura fosse o único valor responsável pelo efeito. Na realidade, existem uma multiplicidade de factores que influenciam este complicado sistema de congelação da água. Apenas quatro são actualmente enunciados como sendo os de maior influência:

 

Evaporação

     A evaporação (através da superfície) extrai eficientemente calor, ao mesmo tempo que contribui para a diminuição da massa a congelar. Provou-se, no entanto, que esta perda de massa não é significativa. Além disso, várias experiências foram efectuadas em recipientes fechados, em que o efeito de Mpemba foi constantemente observado. É, por isso, destes quatro factores, o que menos contribui directamente para a perda de calor da massa de água.

 

Convecção

     A água sofre de uma curiosa anomalia: a sua densidade é máxima a 3,98 °C! Num recipiente de água quente, à medida que a camada superficial da água arrefece, a sua densidade aumenta. Afunda-se, então, sendo substituída por água menos densa e mais quente, gerando correntes de convecção, que aceleram a uniformidade do arrefecimento. Uma mesma massa de água, mas fria, sofrerá menos correntes de convecção por atingir a temperatura de cerca de 4 °C mais cedo. A partir de então, ir-se-á formar à superfície uma fina camada de gelo, actuando como isolante sobre a restante massa de água – tal como nos lagos.

     Então, se traçares um gráfico da variação de temperatura com o tempo, para ambas as massas de água, irás reparar que a curva da água quente não irá reproduzir a da água fria (para gamas de temperatura iguais). Aliás, a água quente irá arrefecer mais rápido.

 

Dissolução de Gases

     A água contém sempre gases dissolvidos - essencialmente oxigénio e dióxido de carbono. Estes gases dificultam a ocorrência do ponto de solidificação. Tens como bom exemplo uma lata de refrigerante com gás. Se, ao retirá-la do congelador, estiver suficientemente fria, poderás constatar que o conteúdo ainda está liquido, agitando-a ligeiramente. Mas, ao abrires a lata, libertando parte do gás, o refrigerante congelará repentinamente! Será ainda mais atraente se o fizeres com uma garrafa transparente de um refrigerante com gás: ao abrir, verás o fenómeno de congelação a alastrar gradualmente pela massa líquida...

     O aquecimento da água elimina parcialmente estes gases, pelo que congelará a uma temperatura mais elevada que a água inicialmente fria.

 

Sobre-arrefecimento

A água não solidifica propriamente a 0 °C!! «C-Como??, perguntarás, mas então...»

     Somente a água pura (como a água destilada) sofrerá solidificação 0 °C. Conforme as Leis de Raoult (sobre pontos de fusão e de ebulição), líquidos que contenham substâncias dissolvidas têm um ponto de fusão (ou de solidificação) mais baixo do que o líquido puro. E como saberás, a água pública contém várias substâncias dissolvidas – minerais, produtos de desinfecção, entre outros. Acrescido a isso, para existir formação de cristais de gelo (de qualquer líquido), há a necessidade de núcleos de cristalização, com os quais as moléculas se reunam para formar cristais (estruturas ordenadas)[1]. Por vezes, as moléculas não encontram pontos de nucleação, quando passam pelo ponto de fusão teórico, originando a descida da temperatura do líquido, sem haver solidificação. No instante da formação de cristais, a temperatura sofre uma descontinuidade súbita, aumentando até ao ponto de fusão (como no exemplo anterior do refrigerante com gás). Chama-se a este fenómeno sobre-arrefecimento (supercooling).

     Estudos experimentais mais recentes [2] revelam que este factor aparenta contribuir de forma mais crucial na evolução deste fenómeno Observou-se, nesses estudos, que a água inicialmente quente apresenta um grau de sobre-arrefecimento menos acentuado ao da inicialmente fria. Ou seja, a água quente começa a congelar entre 0 °C e -2 °C, a água fria entre -4 °C e -6 °C. É necessário que a água fria arrefeça mais do que a quente para congelar!!

 

     Mas não existe ainda uma evidência e uma explicação clara e concisa da ocorrência deste fenómeno. Isto prende-se com o facto de as experiências serem muito sensíveis a outras variáveis: forma e dimensões dos recipientes, e da unidade de refrigeração, impurezas da água, o ponto exacto de fusão, etc. Devido a esta sensibilidade extrema, ainda que haja concordância geral da existência do fenómeno, há desacordo sobre as condições a que o mesmo ocorre, por não se obterem resultados iguais nas várias experiências efectuadas.

     Como cientista que tento ser, também eu quis demonstrar o efeito. Qual o resultado? Na realidade, não me foi possível observar a congelação total em primeiro lugar da água quente em qualquer um dos diferentes recipientes utilizados – imagino que por não ter condições laboratoriais. Não obstante, reparei nas diversas experiências efectuadas, que ambas as massas de água iniciavam a sua congelação em períodos de tempo muito semelhantes; e mantinham estados similares de então em diante. Ou seja, a água quente e a água fria congelavam ao mesmo tempo!

 

Uma moral desta estória é de que cientistas e não-cientistas se devam precaver contra juízos rápidos quanto à possibilidade, ou não, de certos fenómenos!...

Referências na Internet:

  1. Heat Questions
  2. Effet Mpemba
  3. Can hot water freeze faster than cold water?
Rudolf Appelt – Mai/Jun 2001


NOTAS
[1]
Vide Ciência J n.º 12, crónica "Cientista Marado".

[2]
David Auerbach, "Supercooling and the Mpemba effect", em American Journal of Physics, Vol. 63, N.º 10, pp 882-885, Out. 1995; é uma referência internacional.

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